JUSTIÇA EM PLATÃO: ENTRE A ORDEM DA ALMA E A ARQUITETURA DA CIDADE
Introdução: por que voltar a Platão quando falamos de justiça?
Este ensaio nasce às vésperas de minha ida à Grécia para participar da Reunion 2025 do European Group of Public Law (EGPL) — órgão científico da European Public Law Organization (EPLO) —, que ocorrerá de 12 a 14 de setembro de 2025, nas instalações da EPLO em Legraina. O programa tem por eixo International Law, European Union Law e Constitutional Law e reúne acadêmicos de direito público, magistrados de cortes superiores e praticantes de diversos países — ambiente ideal para retomar Platão como fonte de critérios para o debate jurídico contemporâneo.
Uma nota metodológica. Este ensaio toma por base “A República” de Platão, obra escrita em forma de diálogo dramático: as teses não aparecem como tratado sistemático, mas emergem de perguntas, refutações e construções graduais conduzidas por Sócrates em conversa com Céfalo, Polemarco, Trasímaco, Gláucon e Adimanto.
A palavra “justiça” corre solta em tribunais, parlamentos e conversas de rua. Mas o que exatamente queremos dizer quando a invocamos? Em A República, Platão não oferece um código positivo; oferece algo mais útil e duradouro: um critério para orientar leis, decisões e vidas. Justiça, dirá ele, não é a vontade do mais forte nem convenção oportunista. É a arquitetura harmônica do todo. Ao recuperar essa tese, o jurista ganha um padrão para pensar desenho institucional, jurisdição e políticas públicas; o cidadão encontra um mapa para compreender a vida boa e a convivência.
Esta reconstrução acompanha de perto a arquitetura dialógica da República: (i) primeiro, Platão rebate definições insuficientes (Rep. I); (ii) depois, aceita o “desafio” de provar que a justiça vale em si (Rep. II); (iii) então, formula a definição positiva como ordem funcional (Rep. IV, 433a–434c; 441c–444a); (iv) funda essa ordem em uma medida objetiva (a Forma do Bem) e na educação (paidéía) que converte a alma para ela (Livros VI–VII); (v) por fim, mostra que a vida justa é mais feliz (Livro IX) e limita a eficácia de arte e retórica quando divorciadas do verdadeiro (Livro X). Ao longo do caminho, emerge uma pedagogia jurídica: em vez de multiplicar leis, formam-se almas e instituições capazes de imitar a medida do real.
1. O problema inicial: o que justiça não é (Livro I)
Platão inicia enfrentando as ideias do adversário. O cenário é a casa de Céfalo, rico meteco (estrangeiro residente em Atenas) fabricante de escudos e pai de Polemarco e Lisias. Ali, duas definições tradicionais de justiça vêm à tona junto com suas fissuras. A primeira, associada a Céfalo, identifica justiça a dizer a verdade e restituir o que se deve; o exemplo do amigo que enlouqueceu, a quem devolveríamos a arma por ‘pagar a dívida’, expõe o contra-senso: cumprir a restituição, nesse caso, seria produzir dano e, portanto, agir injustamente (Rep. I, 331c–335e). A segunda, desenvolvida por Polemarco, entende justiça como beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos; a intuição parece plausível, mas falha em dois planos: é incerta, porque podemos enganar-nos sobre quem são amigos e inimigos, e é eticamente viciosa, porque fazer mal a alguém não o aperfeiçoa nem o torna mais justo (332d–336a). Essas insuficiências preparam a entrada de Trasímaco e a virada do debate para critérios mais sólidos.
Trasímaco, sofista e retor de Calcedônia, manifesta-se: justiça seria a vantagem do mais forte (toû kreíttonos), isto é, o que o governante estabelece em benefício próprio (338c–347e). Sócrates devolve o problema: governante, como qualquer técnico (téchnê), erra; quando erra, já não governa bem; e a técnica, em rigor, visa ao bem do objeto (o médico ao do doente), não do técnico (341c–342e). O ponto didático é decisivo: lei e força não bastam para definir justiça; precisamos de um padrão objetivo para avaliá-las — um critério que, no direito, fala a linguagem da medida, da finalidade e da coerência institucional.
2. O desafio de Gláucon: a justiça vale em si? (Livro II)
Gláucon reabre a conversa com uma prova de fogo. Primeiro, distingue três tipos de bens: (a) os que amamos só pelo prazer imediato; (b) os que amamos só pelos efeitos (remédios amargos); (c) os que amamos por si e pelos efeitos (saúde, conhecimento). Sócrates afirma que a justiça pertence ao terceiro grupo — valiosa em si e pelas consequências (357b–358a). Depois, ele relata a história contratual da justiça: para escapar das violências de todos contra todos, os homens teriam feito um pacto (nómos) para nem causar, nem sofrer injustiça; justiça seria, então, um meio-termo entre o melhor (injustiçar impunemente) e o pior (ser injustiçado sem poder reagir) (358e–359b; 362e–363a).
Antes de recorrer ao Anel de Giges, Gláucon deixa claro o objetivo do experimento: isolar a motivação interna para a justiça, retirando de cena todos os controles externos (punição, vergonha e reputação). Para isso, propõe uma ficção com força de prova: a história de um pastor chamado Giges que, após um abalo de terra, encontra no interior de um cavalo de bronze um cadáver portando um anel; ao girar a pedra do anel para dentro, torna-se invisível. De posse dessa ‘invisibilidade’, seduz a rainha, mata o rei e usurpa o trono (Rep. II, 359d–360b). O anel funciona, portanto, como um laboratório imaginário que suspende o olhar dos outros e elimina o risco de sanção.
Só então vem a pergunta decisiva: se ninguém nos visse nem pudesse nos punir, permaneceríamos justos? (359d–360c). Preparado esse cenário, Gláucon formula o contraste máximo: o Justo perfeito, sem fama e até difamado, versus o Injusto perfeito, cercado de boa fama e recompensas. Se, mesmo assim, a vida justa se mostrar melhor, então a justiça vale em si (361c–362b).”
Essa moldura obriga Sócrates a mudar de escala para tornar visível o que é difícil de ver no indivíduo: construir “em discurso” uma cidade e, nela, ler cada virtude (sobretudo a justiça) para depois espelhar o achado na alma. A ideia-matriz é simples e poderosa: se encontrarmos o lugar próprio de cada parte e seu ajuste, veremos que justiça é uma forma de saúde do conjunto; o mesmo esquema valerá, então, para a psicologia do indivíduo (Livro IV).
3. A definição positiva: justiça como ordem funcional (Livro IV)
Na cidade, Platão distingue três grupos: governantes (filósofos), auxiliares (guardiões) e produtores. Cada grupo tem uma tarefa própria (érgon) e a cidade é justa quando cada um faz o que é seu sem invadir a função alheia — o célebre “to ta heautoû práttein” (Rep. IV, 433a–434c).
Trata-se de organizar a cidade por meio de sua função e sua competência, não de castas imutáveis. Aquele que tem formação para governar deve governar; quem tem disposição para proteger, deve promover a segurança e quem sustenta a vida material deve fazê-lo com dignidade e limite. O “mito dos metais” (III, 414b–415d) ilustra a pedagogia dessa vocação: “ouro” (governantes), “prata” (auxiliares) e “bronze/ferro” (produtores) não são aristocracias de sangue, mas metáforas de disposições e aptidões. A mobilidade é admitida: se um “bronze” revela “ouro”, ascende; se um “ouro” revela “ferro”, desce (III, 415c–e).
Em paralelo, Platão desenha a psicologia moral em três partes articuladas. Há a razão (logistikón), capaz de calcular meios e fins e de discernir a medida; há o ânimo (thymoeidés), sede de coragem, honra e ímpeto; e há os apetites (epithymetikón), onde vivem desejos de nutrição, posse e prazer. A justiça, no indivíduo, é a disposição estável em que a razão governa, o ânimo (educado para a coragem) atua como aliado e guardião das deliberações racionais, e os apetites obedecem sob a disciplina da temperança (sôphrosýnê) (Rep. IV, 441c–444a, esp. 443d–e). Quando essa hierarquia se desfaz, emergem patologias previsíveis: o apetite no comando produz a tirania do desejo e a servidão do ‘sempre mais’ (pleonexía); o ânimo sem direção converte-se em temeridade e litigiosidade; a razão que abdica fragmenta a alma e entrega o governo ao acaso.
Esse mapa não é metáfora ornamental: fornece o espelho da cidade. O mesmo arranjo (razão no governo, ânimo por aliado, apetites em medida) corresponde, na pólis, a governantes que deliberam pelo bem comum, guardiões que protegem a lei e produtores que abastecem com limite e dignidade. Daí o lugar central da pedagogia: currículo, música e ginástica moldam o ânimo; as matemáticas e a dialética afinam a razão; e a vigilância sobre as narrativas públicas (mímesis, retórica) regula a ‘economia das paixões’, cuja descompensação adoece a alma e as instituições. Em termos jurídicos, a lição é transparente: desenhar estruturas que submetem o impulso e a veemência à deliberação qualificada é replicar, no foro, a harmonia interna da alma justa.
Daqui emerge uma técnica de desenho institucional cara ao jurista contemporâneo: (a) segregação de funções e freios (evitar o “acúmulo tirânico”); (b) mérito como função (seleção e formação dos que decidem); (c) medidas objetivas e padrões para avaliar escolhas públicas; (d) educação cívica como parte do arranjo institucional (sem caráter, a lei é remédio fraco). Assim, Justiça é a arquitetura onde cada parte exerce sua função e as forças se compõem, não se destroem.
4. Por que ser justo? A aritmética dos prazeres e a vida boa (Livro IX)
A objeção de Trasímaco só perde força quando se demonstra que a vida justa é superior para quem a vive, não por reputação ou prêmio externo, mas pela qualidade intrínseca da experiência. Platão, no Livro IX, compara três regimes de vida, cada qual governado por uma “parte” da alma: a do amante do ganho, em que os apetites conduzem e os prazeres são sobretudo de posse e saciedade; a do amante da honra, guiada pelo ânimo, que busca reconhecimento, vitória e estima; e a do amante do saber, presidida pela razão, cuja alegria se liga ao conhecer, ordenar e contemplar (Rep. IX, 580d–583a). A tese é cuidadosa: não se trata de desprezar o prazer do ganho ou da honra, mas de hierarquizá-los. Quando a razão governa, ela mede, compõe e distribui; regula o apetite e disciplina o ímpeto, de modo que os prazeres inferiores se tornem compatíveis com a integridade do todo. Por isso, os prazeres próprios da razão são “mais verdadeiros”: não os mais intensos em explosão momentânea, mas os mais estáveis, menos sujeitos à ressaca da falta e ao ciclo do “sempre mais”.
No extremo oposto está a alma tirânica. A imagem é clínica: o desejo, sem freio, expulsa a deliberação, e o sujeito passa a servir ao mecanismo da carência perpétua (pleonexía). O resultado não é exuberância, mas escravidão, a inquietação de quem nunca basta a si mesmo (Rep. IX, 571a–580a). Em chave institucional, a lição é direta e atual: arranjos que premiam apenas o curto prazo (metas descoladas de qualidade, incentivos à vitória a qualquer custo, políticas públicas que valorizam o número sem mensurar o bem do objeto) tendem a reproduzir a tirania do apetite nos órgãos da cidade. O desenho que dá lugar à razão e à honra (mérito, serviço, responsabilidade, prestação de contas) sustenta práticas mais justas e, no longo curso, mais felizes.
5. O fundamento, epistéme e dóxa, a Linha Dividida e a educação do olhar (Livros VI e VII)
Para que a justiça não dependa de humores ou convenções, Platão distingue dois campos do conhecer. De um lado está a epistéme (ciência), conhecimento que alcança o que é necessário e sempre do mesmo modo, ancorado em causas e em uma medida objetiva. De outro lado está a dóxa (opinião), juízos que versam sobre o que muda, que podem ser verdadeiros em um momento e falsos em outro, porque se prendem ao sensível e à aparência. Essa distinção prepara a hierarquia que organiza os modos de apreensão do real e que Platão expõe pela imagem da Linha Dividida.
A Linha Dividida apresenta quatro estados cognitivos em relação vertical. Na metade inferior situam-se os modos próprios da dóxa. Primeiro, a eikasía (conjectura), que se ocupa de sombras, reflexos, imagens e simulacros, portanto de representações de coisas, onde a mente opera por suposições frágeis e por hábitos de visão. Depois, a pístis (crença), que mira os próprios objetos sensíveis, corpos, plantas, artefatos, fatos cotidianos, e busca neles alguma estabilidade, ainda assim sujeita à variação e ao engano. Na metade superior aparecem os modos da epistéme. Primeiro, a diánoia (raciocínio), que trabalha com entidades matemáticas e relações formais, adota hipóteses como pontos de partida e delas deduz consequências necessárias, realizando uma ascensão ordenada que, embora segura, ainda depende dessas suposições iniciais. Por fim, a nóesis (intelecção intelectual), que é o grau mais alto do conhecer, no qual a alma, pela dialética, abandona hipóteses intermediárias, alcança um princípio não hipotético e, a partir dele, compreende as formas e a sua ordem própria, sem apoio em imagens.
O centro dessa arquitetura é a Forma do Bem. No domínio inteligível, o Bem exerce função análoga à do sol no visível. Assim como o sol torna as coisas visíveis e úteis à vida, o Bem confere inteligibilidade e ser ao que é conhecido, e por isso está além do ser em dignidade e poder. A ciência verdadeira não é apenas posse de conclusões corretas, é visão que recebe do Bem a luz com que se conhecem as formas e a medida com que se ordenam as coisas. Sem esse princípio, o pensar permanece preso a hipóteses que não se justificam por si, e a cidade oscila entre golpes de opinião.
A pedagogia que acompanha essa hierarquia aparece na alegoria da Caverna. Educar não é inserir visão em olhos cegos, é converter a alma, das sombras para a luz. Primeiro, o olhar se desprende das imagens projetadas na parede, depois suporta a claridade dos objetos fora da gruta, em seguida aprende a contemplar os próprios astros e, por fim, torna-se capaz de olhar o sol (metáfora do Bem).
Essa conversão não é instantânea, exige hábito, treino e, uma vez realizada, impõe a responsabilidade do retorno à cidade, pois quem viu deve auxiliar os que ainda não veem.
Vista por inteiro, a Linha Dividida oferece um mapa de passagem da dóxa para a epistéme. A conjectura, que lida com imagens, deve ceder lugar à crença informada pelos fatos. A crença, que se fixa no sensível, deve ser elevada ao raciocínio capaz de operar com relações necessárias. O raciocínio, que ainda depende de hipóteses, deve ser encaminhado à intelecção intelectual, que se apoia no princípio primeiro e vê como as formas se articulam sob a medida do Bem. Não se trata de desprezar os planos inferiores, eles são degraus necessários, mas de orientar o movimento ascensional do conhecimento, para que a cidade e a alma não se detenham em aparências.
Transposto ao direito, esse esquema ilumina a prática. A eikasía corresponde ao rumor, à aparência de prova, ao recorte de imagem que impressiona sem demonstrar. A pístis corresponde à verificação empírica sem estrutura, à coleção de fatos que ainda não foram organizados por razões. A diánoia corresponde ao trabalho técnico que parte de hipóteses normativas e reconstrói, por raciocínio, a solução adequada, com uso de categorias, de dados e de critérios de coerência. A nóesis corresponde ao juízo que, sem abandonar o caso e a norma, o reconduz a princípios que não são arbitrários, como igualdade, proporcionalidade, finalidade pública e vedação de arbitrariedade, princípios que funcionam como medida objetiva do justo. Onde decisões públicas se contentam com conjecturas e crenças, a pólis fica entregue ao vento das opiniões. Onde o foro estrutura hipóteses, testa consequências e, sobretudo, se orienta por um princípio que ilumina e ordena, o padrão epistêmico se aproxima do que Platão exige.
Por isso, quando a República propõe a ascensão da crença à ciência, não oferece uma curiosidade filosófica, propõe um método de governo. As escolhas jurídicas ganham solidez quando passam da imagem à prova, da prova ao raciocínio e do raciocínio a um princípio que legitime a conclusão. A Forma do Bem, na metáfora platônica, não é um adorno, é a fonte de inteligibilidade que permite distinguir o que apenas parece justo do que de fato o é.
6. Lei, educação e a incompletude do nómos: o papel da paidéía
Como entra a lei positiva nesse quadro? Platão é mais realista do que costuma parecer. No Livro IV, ele desaconselha o impulso de “legislar minúcias”: quando a educação está certa, a vida comum se ordena por si; quando a formação falha, a profusão de regras não cria justiça, apenas multiplica pretextos (Rep. IV, 425d–e). Em matérias sacras, remete ao oráculo de Delfos (427b–c), reconhecendo limites do legislador humano e o caráter convencional de certos arranjos. Nos diálogos tardios, o diagnóstico é explícito: a lei é rígida e, por isso, “ignorante” do caso concreto; não alcança a variação infinita da vida (294a–c).
A síntese, para o jurista, é precisa. A lei é indispensável, mas incompleta; ganha espinha dorsal quando vem acompanhada de educação, incentivos bem desenhados e distribuição clara de responsabilidades. Compliance, em termos platônicos, é mais filho de caráter e arquitetura institucional do que de “regras a mais”. O bom legislador reconhece essa incompletude e investe na formação que torna possível cumprir a regra como expressão de um bem comum inteligível.
7. Retórica, sofística e risco institucional: persuasão sem verdade
A retórica, tomada em si, é ambígua. Platão a apresenta como uma “técnica de agradar” que gera crença sem conhecimento, tal como a confeitaria produz prazer sem saúde, diante da medicina (462b–466a). O perigo institucional é nítido: se a cidade passa a decidir pelo mais sedutor, o pior pode parecer melhor, e o ânimo e o apetite tomam o lugar da razão. O antídoto não é silenciar a fala, mas qualificá-la. A boa retórica é psychagogía: condução da alma pela verdade, fundada no conhecimento dos tipos de alma e no método de “coleta e divisão”, que sabe reunir o que é disperso e distinguir o que é confuso (259e–266c).
Traduzido ao foro, isso significa procedimentos que obriguem a palavra a passar pelo crivo do que é — regras de prova, dever de fundamentação, cultura de precedentes que encadeia razões, espaço para peritos quando o tema exige técnica. A solução platônica compõe três níveis: formação de elite para quem decide, preâmbulos e educação para o conjunto dos cidadãos e instituições que diminuem o poder da retórica vazia, devolvendo à razão o governo da casa comum.
8. Concretude: da ágora ao foro — aplicações para juristas
A fórmula “cada parte faz o que é seu” não é um lema inspirador, mas um método de construção institucional. Em primeiro lugar, ela pede segregação de funções e freios recíprocos. Onde o julgador se transforma em legislador de ocasião, ou o gestor investiga e julga a si mesmo, o apetite invade a razão e a cidade adoece. Estruturas de controle interno e externo, missões institucionais claras e métricas coerentes recompõem a hierarquia da alma justa no desenho da pólis.
Em segundo lugar, a justiça requer meritocracia funcional com responsabilidade. O chamado “mito dos metais” é pedagogia de aptidões, não aristocracia de origem, mas vocação provada e formação constante. No plano jurídico, isso se traduz em concursos sérios, capacitação contínua, barreiras à captura e mecanismos que alinhem incentivos ao bem do objeto (o interesse público) e não ao sucesso episódico de quem decide.
Em terceiro lugar, há uma exigência de paidéía jurídica. O currículo do Livro VII — aritmética, geometria, estereometria, astronomia, harmonia — não é ornamento helênico; é treino da mente para ordenar, abstrair, perceber proporções. No cotidiano forense, isso desce ao chão em três práticas: formação humanística que impede o tecnicismo cego; ética como eixo, para conter o brilho da astúcia sem verdade; e técnicas de prova e decisão que submetem a retórica à razão. O advogado que sabe “coletar e dividir” conceitos evita sofismas elegantes; o juiz que domina a hierarquia de razões aprecia melhor a prova e resiste aos casos ruidosos.
Em quarto lugar, a crítica platônica à mímesis lembra que imagens e narrativas moldam almas. Em um ecossistema saturado por mídias, transparência, letramento informacional e accountability não são acessórios de “boa governança”; integram a justiça cívica.
Por fim, justiça é equilíbrio do todo. Platão a chama de “saúde” da alma (Rep. IV, 444c). Em gestão pública e contratos, a metáfora ilumina a noção de equilíbrio econômico-financeiro: não apenas cláusula técnica, mas condição de estabilidade do arranjo, que impede que uma parte capture o sistema. A injustiça, aqui, tem nome: pleonexía, a ânsia de levar sempre mais, rompendo a ordem funcional.
9. Objeções clássicas e atualidade
A acusação de idealismo acompanha Platão desde cedo. Aristóteles criticará a teoria das Formas; correntes liberais desconfiarão do “filósofo-rei”. Três esclarecimentos permitem recolocar o debate no trilho.
Primeiro, a República não é decreto autoritário, é construção em discurso: um laboratório racional para identificar princípios. A chamada “comunidade de mulheres e filhos” restringe-se a um grupo mínimo (os guardiões) e é, no próprio diálogo, revista diante de dificuldades. O que interessa ao jurista permanece incólume: ordem funcional, educação e medida objetiva do justo.
Segundo, Platão não despreza a lei; confere-lhe lugar próprio. Quando faltam sábios, a lei é o “segundo melhor”; quando vem acompanhada de preâmbulos e formação, ganha música e vigor pedagógico. O alvo da crítica não é a normatividade, mas o legalismo cego que confunde a regra com a medida do real.
Terceiro, a atualidade é inequívoca. Em tempos de economia da atenção e de sobrecarga informacional, a denúncia da retórica sem verdade é quase profética. Regras de prova, cultura de precedentes, justificações públicas robustas e educação fazem hoje o papel das “músicas” com que, em Platão, se disciplinava a alma da cidade. E, no direito público, a segurança não é formalismo: é a condição para que a pólis “veja” o Bem e oriente por ele as suas escolhas.
10. Conclusão, justiça como forma de vida e arquitetura do real
Terminamos voltando ao começo. Seguimos a arquitetura dialógica da República, percorremos as refutações iniciais, aceitamos o desafio de Gláucon, edificamos a cidade em discurso para enxergar nela a medida do justo e espelhamos esse desenho na alma. Vimos que justiça não é a vitória do mais forte nem a soma de gestos corretos tomados ao acaso, é a ordenação adequada do todo, na pólis e no indivíduo, com cada parte em seu lugar e com a razão no governo. Esse caminho só faz sentido porque se apoia em um fundamento objetivo, a Forma do Bem, e porque depende de uma formação que converte a alma, sem a qual a técnica degrada e a lei endurece.
A distinção entre epistéme e dóxa mostrou que o saber jurídico precisa elevar-se da opinião cambiante para a ciência do que é, e a Linha Dividida ofereceu o mapa dessa ascensão. A conjectura, que se alimenta de imagens, cede lugar à crença informada pelos fatos; a crença, ainda presa ao sensível, abre passagem ao raciocínio, que opera com relações necessárias; o raciocínio, por sua vez, prepara a intelecção intelectual, em que os princípios se tornam visíveis e as formas se mostram ordenadas sob a luz do Bem. Transposto ao foro, esse itinerário é um método prático: sair do rumor para a prova, da prova para a razão, da razão para o princípio que legitima a decisão. Onde o direito permanece na superfície da dóxa, governa o acaso; onde alcança a epistéme, a cidade respira estabilidade e justiça.
Ao longo do percurso, a lei apareceu como indispensável e incompleta. Sem paidéía, multiplica comandos que não convertem; com preâmbulos, educação e desenho institucional coerente, ganha música persuasiva e espinha dorsal. A retórica, tomada sem verdade, fabrica crenças e confunde o pior com o melhor; tomada como psychagogía, submete a palavra ao que é, organiza a prova, encadeia razões e honra o dever de fundamentar. A mímesis, quando se torna espetáculo, deseduca; quando se submete à medida, auxilia a cidade a ver. Não faltam advertências para o nosso tempo de abundância de imagens e escassez de critérios.
A lição que se desprende tem três planos que se sustentam reciprocamente.
Primeiro, a justiça começa na alma. Quando a razão cede, o direito vira expediente; quando o ânimo toma o leme, prevalece a combatividade sem direção; quando o apetite manda, instala-se o querer mais infinito que desorganiza a vida comum. A formação do caráter, a disciplina dos afetos e o hábito de deliberar são, aqui, a pedra de fundação.
Segundo, a justiça continua nas instituições. Funções definidas e segregadas, mérito com responsabilidade, controles que funcionam, incentivos orientados ao bem do objeto público. A cidade adoece quando isso não ocorre. O arranjo institucional deve espelhar a harmonia da alma, de modo que cada órgão cumpra o que lhe é próprio e que nenhuma instituição absorva o todo.
Terceiro, a justiça precisa de uma medida objetiva. Não basta decidir, é preciso decidir segundo um padrão que não seja o capricho. A diferença entre opinião, dóxa, e conhecimento, epistéme, pede uma postura de elevação: sair da impressão, apoiar-se em fatos verificáveis, organizá-los por raciocínio e alcançar princípios que orientem a conclusão. A imagem do Bem fornece esse norte, pois ilumina o que conta como bom motivo e ordena o restante. Na prática pública, isso significa decisões com motivos expostos de modo claro e encadeado, coerência com o que já foi decidido e vínculo explícito com finalidades legítimas, tendo por objetivo o interesse comum.
Quando esses três planos se alinham, a cidade deixa de oscilar entre esperteza e voluntarismo, e o direito deixa de ser apenas técnica de contenção para tornar-se pedra angular. A imagem do sol que ilumina o inteligível ganha urgência prática. Cabe a juristas promover a virada do olhar, educar o gosto pela razão pública, desenhar normas que façam aprender e não apenas punir. Se a pólis deseja ser governada e não arrastada, precisa escolher a luz que tornará visíveis os seus caminhos. É este, em última análise, o convite de Platão: cuidar de uma ordem que começa no interior, continua na lei e se concretiza no bem comum.
Dito de modo simples: fazer justiça é manter a ordem da alma, ordenar as instituições e orientar ambos por uma medida do Bem, para que cada parte seja o que deve ser e o todo possa florescer. Com esse alerta platônico, avancemos, para que a Cidade ideal se torne, passo a passo, a Cidade Real.