O Direito Administrativo Incentivador e a Teoria dos Contratos Relacionais como Antídoto à Litigiosidade nas Concessões Aeroportuárias

Por Augusto Neves Dal Pozzo

1. Introdução – o desequilíbrio como sintoma de uma racionalidade ainda punitiva

A reportagem da Folha de S. Paulo de hoje, 13 de outubro de 2025, revelou que a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) negou aproximadamente R$ 40 bilhões em pleitos de reequilíbrio financeiro de concessões aeroportuárias ao longo de doze anos. Guarulhos, Galeão e Brasília lideraram a lista de pedidos indeferidos. À primeira vista, o número impressiona pela magnitude — mas, sob a lente do direito administrativo contemporâneo, é também um sintoma de uma racionalidade contratual ainda marcada pela desconfiança e pelo controle punitivo.

O dado não deve ser interpretado apenas como uma demonstração de rigor técnico da agência, mas como um alerta institucional: o modelo de relação entre Poder Público e concessionário ainda não amadureceu para incorporar a dimensão relacional e cooperativa dos contratos de longo prazo. A negação sistemática de pedidos de reequilíbrio não representa, necessariamente, eficiência ou economicidade; pode significar, ao contrário, uma deficiência estrutural no desenho do contrato e na atuação regulatória.

É nesse contexto que o direito administrativo incentivador, aliado à teoria dos contratos relacionais, surge como via dogmática e institucional capaz de prevenir pleitos bilionários e fomentar uma cultura administrativa de confiança e aprendizado mútuo.

2. A lógica do reequilíbrio e seus paradoxos

O instituto do reequilíbrio econômico-financeiro nasceu como expressão da garantia constitucional da estabilidade do contrato administrativo. Todavia, a aplicação contemporânea desse princípio tem revelado paradoxos. No caso das concessões aeroportuárias, a dinâmica macroeconômica — crises cambiais, pandemias, variações de demanda — ultrapassa o horizonte previsível e transforma o contrato em um campo de tensão entre estabilidade e adaptabilidade.

Os dados apresentados pela reportagem evidenciam que quase metade dos pleitos foi rejeitada, muitos deles sob o argumento de que o risco de demanda seria “ordinário” e já precificado nos leilões. Essa leitura, ainda fortemente ancorada na matriz de risco formalista, ignora que a essência das concessões contemporâneas não é a rigidez, mas a capacidade institucional de aprendizado e resposta.

Ao tratar situações complexas sob a lógica binária do deferimento ou indeferimento, há o enfraquecimento do caráter relacional do contrato e perpetua um modelo de governança conflitiva, em que o equilíbrio se torna um campo de disputa e não de reconstrução compartilhada.

3. Do direito administrativo regulador ao direito administrativo incentivador

A virada incentivadora do direito administrativo propõe uma transição do paradigma de controle e desconfiança para o de cooperação e estímulo à performance pública. Enquanto o direito regulador tradicional busca corrigir falhas de mercado por meio da imposição de limites e sanções, dando ênfase ao também chamado direito administrativo sancionador, o direito administrativo incentivador atua sobre comportamentos, estruturando mecanismos de alinhamento de incentivos entre o público e o privado.

Nas concessões aeroportuárias, essa perspectiva exige que a regulação deixe de ser apenas corretiva para tornar-se promotora de inovação, adaptabilidade e resultados públicos mensuráveis. Em vez de simplesmente negar reequilíbrios, a agência poderia adotar mecanismos preditivos e colaborativos de governança, como comitês de aprendizado regulatório com análise contínua de variáveis de demanda e de performance, modelos de reequilíbrio dinâmico com parâmetros automáticos de compensação baseados em indicadores econômicos objetivos e planos de incentivo à eficiência operacional, que convertam parte do risco assumido em oportunidades de ganho compartilhado.

A teoria dos incentivos, aplicada ao direito público, parte da premissa de que agentes racionais respondem melhor à cooperação do que à punição. Assim, um direito administrativo incentivador é aquele que substitui o controle pela confiança estruturada, em que o adimplemento contratual é monitorado por incentivos de performance e não por ameaças de sanção.

4. Os contratos relacionais e o dever de adaptação contínua

A teoria dos contratos relacionais, desenvolvida por Ian Macneil, sustenta que contratos de longa duração não são eventos pontuais, mas processos sociais contínuos. Nas concessões de infraestrutura, essa concepção é especialmente relevante: o contrato não se esgota na assinatura, mas se reconstrói a cada ciclo de investimento, de variação de demanda e de revisão tarifária.

Aplicar essa teoria ao caso das concessões aeroportuárias implica reconhecer que o contrato é um organismo vivo, que deve conter cláusulas abertas de adaptabilidade e procedimentos cooperativos de revisão. O “reequilíbrio” deixa de ser uma exceção — um remendo após o dano — para se tornar parte da governança ordinária, estruturada ex ante.

Essa abordagem também exige uma nova hermenêutica da boa-fé administrativa. O dever de colaboração, previsto implicitamente no art. 422 do Código Civil e consagrado pela doutrina do direito público contratual, vincula ambas as partes a um comportamento de transparência e solidariedade na execução contratual. Portanto, a recusa pura e simples de pleitos de revisão, sem um diálogo técnico-processual estruturado, pode configurar uma neutralização ao dever de lealdade institucional.

5. Prevenção de litígios e desenvolvimento sustentável

Ao aplicar a teoria dos contratos relacionais sob o prisma do direito administrativo incentivador, abre-se um caminho para a prevenção de litígios e a promoção do desenvolvimento sustentável. Em um setor estratégico como o aeroportuário — eixo logístico de integração nacional e vetor de competitividade — a previsibilidade regulatória é tão importante quanto a segurança jurídica.

Cada litígio representa um custo de transação que drena energia institucional do Estado e desincentiva o investimento privado. O papel das agências reguladoras, portanto, deve ser o de mediadoras de equilíbrios dinâmicos.

As agências podem assumir o papel de tornar-se verdadeiros laboratório de inovação institucional, estimulando instrumentos como regulação responsiva, acordos substitutivos de reequilíbrio baseados em metas de investimento e mecanismos de sandbox regulatório para testar soluções de governança compartilhada. Essas ferramentas permitem transformar o conflito em aprendizado, e o contrato em um instrumento de desenvolvimento público-privado, coerente com a função social da infraestrutura.

6. Conclusão – o desafio de uma cultura administrativa relacional

O caso revelado pela Folha de S. Paulo não é apenas um retrato de uma política de indeferimentos, mas um espelho da cultura administrativa brasileira, ainda resistente a abandonar a postura defensiva e adversarial. O direito administrativo do futuro — e que já se desenha nas melhores práticas internacionais — será um direito relacional e incentivador, fundado na confiança regulada e na adaptação contínua. Em vez de um Estado que reage a pleitos, o Brasil precisa de um Estado que antecipa equilíbrios, desenhando contratos que aprendem com a realidade e estimulam resultados públicos.

O caminho passa, inevitavelmente, por uma reconstrução doutrinária e institucional que reconheça o contrato administrativo como um verdadeiro processo de cooperação, no qual Estado e particular compartilham responsabilidades e aprendizados ao longo de toda a execução. Essa reconstrução também exige que a regulação deixe de ser vista apenas como instrumento de controle e passe a ser compreendida como mecanismo de incentivo, inovação e aprimoramento das políticas públicas. Por fim, é imprescindível compreender que o desenvolvimento nacional depende, antes de tudo, da qualidade das relações jurídico-administrativas que se estabelecem entre os agentes públicos e privados, pois é nelas que se concretizam, de forma cotidiana, os objetivos constitucionais de eficiência, segurança e promoção do interesse coletivo.

Se o direito administrativo do século XX se notabilizou pelo controle, o do século XXI se afirmará pelo diálogo e pela inteligência institucional. E, nesse novo cenário, o administrador e o concessionário deixam de ser adversários para tornarem-se coautores de políticas públicas eficientes e sustentáveis.