Não é novidade dizer que, historicamente, os serviços de manejo de resíduos sólidos, enquanto serviços públicos de saneamento básico, receberam muito menos atenção na comparação com outros serviços do setor, notadamente os serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A isso se devem diversos fatores.

Apesar de estarem intrinsicamente relacionadas ao setor de saneamento básico, as atividades em questão apresentam características próprias que as identificam. Sendo assim, a própria organização da prestação dos serviços do setor se deu de maneira muito diversa. Naturalmente, isso implicou o estabelecimento de uma regulação específica para cada um dos serviços do setor de saneamento básico. 

Enquanto nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário restou consagrado um modelo muito particular do Direito Brasileiro – concebido sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970 - de delegação de serviços municipais a companhias estatais estaduais (“concessões-convênio”3), no caso do setor de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, a prestação dos serviços se organizou, no mais das vezes, a partir da execução direta das atividades pelas Municipalidades.  

Nada obstante, a maior prova do relativo esquecimento da regulação dos serviços de manejo de resíduos sólidos é que em especial os serviços de destinação final dos resíduos nunca foram submetidos a um regime de monopólio de prestação. Ora, esse cenário na prestação de serviços manejo de resíduos contrariou a histórica tendência brasileira na qual o Poder Público impingiu verdadeiras restrições – quando não barreiras intransponíveis – à livre iniciativa na exploração de atividades econômicas qualificadas como serviços públicos (mesmo aqueles não marcados por características típicas de monopólio natural[1]).

Assim é que quase todas as atividades da cadeia de serviços do manejo de resíduos sólidos – com exceção dos serviços de coleta – sempre foi passível de ser explorada fora do regime de serviço público.

Veja-se, por exemplo, que, até os dias de hoje, mesmo após algumas reformas regulatórias dos serviços de saneamento básico[2], há uma grande quantidade de aterros privados sendo explorados por atores econômicos que prescindiram de instrumentos publicísticos de delegação dos serviços. Nesses casos, a exploração dos aterros por particulares está condicionada, em regra, apenas a atos de liberação da Administração ordenadora – basicamente, aliás, à expedição de licenças ambientais e urbanísticas para a construção e operação dos aterros sanitários. Sequer tal atividade está sujeita a uma regulação mais intensa de entrada no setor, a exigir, com efeito, uma autorização regulatória do Poder Público.

Pois bem.

Ocorre, contudo, que o assim chamado Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico procurou conferir um novo modelo de organização dos serviços públicos de saneamento básico. A prestação regionalizada dos serviços foi enunciada como objetivo fundamental do setor[3], a incentivar a reunião de Municípios em unidades capazes de compartilhar infraestruturas que permitissem uma maior escala das atividades do setor em nome da eficiência econômica.

Especificamente no caso dos serviços de manejo de resíduos sólidos, a grande infraestrutura a ser compartilhada que justificaria a integração entre os municípios é, em regra – ao menos no Brasi, onde ainda não foram concebidos de maneira mais consistentes outras formas de tratamento dos resíduos – o aterro sanitário (entendido aqui como a estrutura operacional onde ocorre a disposição final dos rejeitos).

Sem embargo, nesse contexto, a utilização de aterros sanitários por diversos municípios, notadamente municípios menores cujas populações não produzem tantos resíduos, geraria ganhos necessários de escala a viabilizar a exploração do mercado de tratamento dos resíduos, e que contribuiria, em última instância, para a realização de uma política pública relacionada ao fim da disposição final inadequada dos resíduos.

Sucede, entretanto, que esse ganho de escala a gerar benefícios econômicos só seria possível de ser realizado com a instituição de uma restrição do mercado que limitasse a concorrência de outros locais de disposição dos rejeitos; melhor dizendo, do ponto de vista econômico, a exploração do serviço de gestão operacional de um aterro sanitário seria mais eficiente com a presença de um único agente econômico.

Por outro lado, como se disse, a prestação dos serviços de gestão de aterros sanitários é possível de ser realizada em outro regime que não o publicístico, independentemente, portanto, de qualquer instrumento delegatório. Isso significa, pois, a possibilidade de exploração dos serviços de operação de aterros em regimes assimétricos[4]: i) público (via concessão dos serviços, conforme instrumento eleito pelo legislador ordinário) e ii) privado (que depende de atos de liberação Administração ordenadora, notadamente no que diz respeito ao licenciamento das infraestruturas do aterro).

Diante desse quadro, uma pergunta que merece ser debatida é a seguinte: poderá um Município integrante de uma estrutura regionalizada que compartilha a gestão de um aterro com outro(s) Município(s) – e cuja exploração dessa infraestrutura foi conferida a um particular por meio de uma concessão – expedir licenças ou autorizações para um particular explorar, nos seus limites territoriais, essa mesma atividade de gestão de resíduos sólidos?

Questiona-se, em outras palavras, se a regionalização poderia criar, de per se, uma restrição legal ao direito fundamental à livre iniciativa, a condicionar, no longo prazo, a própria coexistência de regimes de prestação diferentes dos serviços de operação de aterros sanitários.

As discussões sobre esse questionamento, sem dúvida, têm diversas nuances (algumas das quais escapam ao escopo do presente artigo). Nada obstante, seria importante vislumbrar um eixo de resposta – e ele tem a ver com a titularidade da prestação dos serviços em estruturas regionalizadas.

Malgrado certas controvérsias em relação à matéria da titularidade dos serviços de manejo de resíduos sólidos (como de resto em relação a outros serviços componentes do setor de saneamento básico), parece-nos claro que, qualquer que seja a estrutura regionalizada concebida (ainda que nos arranjos regionais compulsórios, como as microrregiões), os Municípios ficam vinculados aos desígnios dos interesses comuns da entidade regionalizada.

Nesse sentido, caso a entidade regionalizada – ou a pessoa a quem se delegar as competências pela contratação dos serviços – decida por promover uma concessão que envolva os Municípios, qualquer ação de um Município no sentido de admitir a exploração de uma mesma atividade material concorrente com aquela atividade objeto da concessão – no caso, a destinação dos resíduos sólidos em aterro sanitário – deve ser entendida como ilegal.

A política pública concebida regionalmente entendeu que a concorrência no setor resultaria em prejuízos aos interesses públicos concernentes ao encerramento dos lixões e aterros controlados e à gestão adequada dos resíduos sólidos urbanos, sobretudo pela impossibilidade na formação de uma economia de escala que permitisse a exploração dos serviços de manejo.

Com efeito, temos para nós que, no cotejo de interesses envolvidos, via de regra, o Município estará legalmente proibido de conceder qualquer ato de liberação da atividade de gestão e operação de aterro sanitário a ser explorado em regime privado e em concorrência com um aterro da concessão (ainda que esse esteja localizado em outro município da estrutura regional) por um particular. Nada obstante a autonomia que a própria Constituição reserva aos Municípios, é possível que essa, em certas ocasiões, esteja condiciona a interesses mais gerais, como o desenvolvimento de uma política pública de interesse comum com outras unidades federativas (outros Municípios e o Estado).

Conclui-se, portanto, que a restrição à livre iniciativa gerada pela regionalização dos serviços de manejo de resíduos sólidos encontra se justifica. Sendo a regionalização uma política pública eleita pelo legislador ordinário que tem o condão de satisfazer direitos fundamentais (direito à saúde, no caso), há argumentos para que o direito fundamental à livre iniciativa[5] seja restringido (na medida do necessário), limitando-se a prestação desses serviços em regimes assimétricos.

É bem verdade, por outro lado, que cada caso deve ser observado de maneira específica, de modo a que não se estabeleça uma restrição apriorística ao direito fundamental da livre iniciativa. Não se pode fechar os olhos para que a manutenção da diversidade de regimes na exploração dos serviços, em determinados locais e em determinadas hipóteses, tem o condão de contribuir mais eficazmente para o atendimento dos interesses públicos subjacentes à gestão dos resíduos sólidos.

Por exemplo, pode-se dizer que, casos que envolvam municípios maiores, os quais possuem inclusive maior regramento dos serviços (pela disciplina ambiental em especial) em nível local, haverá a prevalência da autonomia municipal em face da proposta de regionalização dos serviços. Entra em debate, aliás, um aspecto muito importante que já tem sido capturado pela doutrina mais abalizada segundo a qual a titularidade dos serviços não é uma definição estanque, mas sim um elemento em movimento, que pode alterar conforme determinadas circunstâncias técnicas, econômicas e operacionais. A concorrência em assimetria de regimes de prestação, nesse sentido, poderia gerar incentivos à promoção do mercado de tratamento dos resíduos, o que contribui em diversos aspectos para a sociedade.



[1] Cf., por todos, TRINDADE, Karla Bertocco. A Construção de um Novo Modelo Institucional para o Saneamento no Estado de São Paulo. ln: MOTA, Carolina Mota (coord). Saneamento Básico no Brasil: aspectos jurídicos da Lei Federal n. 11.445/ 07. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 291.

[2] A mais recente reforma do setor ocorreu em 2020, com a aprovação da Lei Federal nº 14.026/2020.

[3] Art. 49, inc. XIV da Lei Federal nº 11.445/2007: “Art. 49. São objetivos da Política Federal de Saneamento Básico: (...) XIV - promover a regionalização dos serviços, com vistas à geração de ganhos de escala, por meio do apoio à formação dos blocos de referência e à obtenção da sustentabilidade econômico-financeira do bloco”.

[4] Cf., sobre o regime de assimetria regulatória, GUERRA, Sérgio. Riscos, assimetria regulatória e o desafio das inovações tecnológicas: FREITAS, Rafael Véras de; RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno (Coord.). Regulação e novas tecnologias. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 83-98.

[5] Cf. SCHIRATO, Vitor Rhein. A noção de serviço público em regime de competição. 2011. Tese (Doutorado em Direito do Estado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.