Outro princípio reitor da atividade administrativa de infraestrutura é o da setorialidade. Dentre outros significados, a palavra “setor”, em vernáculo, significa “aspecto particular de um conjunto de atividades; esfera de ramo de atividade”. Portanto, designa uma área específica de determinado campo do conhecimento ou de atividade, que se agrupam pela unidade de escopo.
A noção de subdivisão setorial foi feita, em primeiro lugar, no campo da economia – onde se fala em setor primário (o que se utiliza da exploração de recursos naturais – como o setor agrícola); setor secundário (que designa a produção por transformação – setor da metalurgia); setor terciário (circulação de mercadorias – setor do comércio varejista) e assim por diante. Na esfera das organizações sociais, é possível falar em primeiro setor (Estado), segundo setor (mercado) e terceiro setor (entidades sem fins lucrativos). A conotação que devemos enfocar é a jurídica, sendo esse o ponto de partida para compreensão do aludido princípio.
Os chamados ordenamentos setoriais foram concebidos em tempos recentes por força de delineamentos mais precisos dos setores econômicos, consoante alude Alexandre Santos de Aragão, a partir das assim chamadas teorias “ordenamentais” desenvolvidas por Santi Romano e Giannini. Essa tendência mais moderna aponta para uma preocupação cada vez maior em buscar a especialização do regramento jurídico voltado à disciplina de determinados setores sem, contudo, perder a vinculação às regras e princípios gerais reguladores da atividade geral à qual o setor pertence, no caso, em relação à infraestrutura pública. Esse é o ponto central a ser enfrentado.
Postula-se que é possível extrair um regime jurídico próprio da atividade de infraestrura consubstanciado pelos princípios e regras jurídicas que se encontram enumerados no presente capítulo, todos implícitos no texto constitucional e que conferem unidade e harmonia a essa atividade. Todavia, é inegável que os chamados setores que envolvem cada campo em que essa atividade infraestrutural se desenvolve possuem particularidades próprias, inclusive, com o uso de linguagem técnica específica. Há no Brasil, para cada intitulado campo da infraestrutura, uma legislação específica que lhe confere arrimo, como, por exemplo, o “setor de rodovias” ou o “setor de portos”.
O que se defende, incisivamente, é que esse regime geral da atividade de infraestrutura recaia sobre a legislação setorial, de maneira que se possa compreendê-lo sob uma perspectiva sistemática, tal como se exige em qualquer construção científica. Detectada, pelo intérprete, qualquer contradição ao regime geral extraído do texto constitucional, deve, ela, ser interpretada adequadamente no contexto da legislação setorial, se se tratar de norma especial a par da geral. Não há outra forma de enxergar essa realidade, senão pela incontrastável via da sistematização, dado que somente ela permite a intepretação racional do “sistema administrativo da infraestrutura”.
Por esse sistema, enraiza-se os fundamentos gerais, de maneira a espraiá-los aos especiais, alcançando-se, por conseguinte, plena harmonia e coerência. Para ilustrar, vamos utilizar, como exemplo, os portos. A chamada legislação setorial dos portos, marcada por seu ordenamento especial que discrimina e singulariza suas particularidades, encontra-se condicionada ao regime geral da atividade de infraestrutura, de molde a compor o “sistema do direito administrativo da infraestrutura”. Esse é o caminho que consagra os reclamos de estabilidade do direito firmado no primado da segurança jurídica, de sorte a evitar a desorientação do sistema normativo, pela produção de efeitos jurídicos que podem ser desastrosos, ensejadores de contrafações e invalidações sucessivas.
Para que se possa ter uma ideia dos importantes reflexos jurídicos que o regime geral da infraestrutura pode ensejar em relação a sua incidência em leis setoriais, de forma a reforçar a importância da aplicação do princípio da setorialidade, passaremos a tracejar algumas consequências jurídicas relevantes, sem qualquer pretensão de exauri-las, tendo em vista sua enorme multiplicidade. No tocante ao setor de transporte, que congrega os setores de rodovia, ferrovia, portos, hidrovias e aerovias, podemos identificar a incidência da seguinte legislação setorial: a Lei 5.917/73, que aprovou o Plano Nacional de Viação, e a Lei 12.379/11, que dispôs sobre o Sistema Nacional de Viação (SNV) e sobre o Sistema Federal de Viação (SFV).
Consoante o disposto no artigo 1º, desse diploma legal, “o sistema nacional de Viação é constituido pela infraestrutura física e operacional dos vários modos de transporte de pessoas e bens, sob jurisdição dos diferentes entes da Federação”. Aqui, verifica-se de plano que a legislação setorial encontra-se em absoluta consonância com o quanto defendido acerca da atividade de infraestrurura. A lei se utilizou da expressão infraestrutura física, para designar a provisão de ativos públicos, e a denominação, infraestrutura operacional, para intitular, exatamente, os recursos envolvidos na realização das atividades de manutenção e operação de ativos compreendidos no subsistema nacional rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroviário, consoante o disposto no seu artigo 3º.
Mais à frente, novamente de modo harmonioso, o artigo 5º determina que a União exercerá suas competências junto ao Sistema Federal de Viação, que “compreende o planejamento, a construção, a manutenção, a operação e a exploração dos respectivos componentes”. Ora, essa é a atividade administrativa de infraestrutra em sua cabal pureza, devidamente positivada e em absoluta consonância com seu regime jurídico específico. Aqui, há a aplicação inequívoca do princípio da setorialidade, em que o regime jurídico geral depreendido dos ditames constitucionais se encontra absolutamente abarcado pela legislação setorial, de maneira irreparável.
Na sequência da lei, em seu artigo 6º, há uma adversidade: determina, o dispositivo, que a União exercerça suas competências relativas ao SFV diretamente ou mediante “concessão, autorização ou arrendamento a empresa pública ou privada”. Mais à frente, em seu § 2º, manifesta que os “Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão explorar a infraestrutura delegada, diretamente ou mediante concessão, autorização ou arrendamento a empresa pública ou privada, respeitada a legislação federal”. O desdobramento que se coloca aqui se refere a saber se a figura do arrendamento poderia ser utilizada para efeito de delegação da atividade, uma vez que a Constituição Federal não o menciona, tal como faz expressamente em relação ao instituto da concessão e permissão, em seu artigo 21, inciso XII.
Não parece existir essa possibilidade, visto que a delegação de atividade administrativa típica (tal como a delegação da atividade de infraestrutura ou mesmo de serviço público) por meio do instituto do arrendamento não encontra respaldo no texto constitucional. Essa é uma aplicação prática importante do princípio da setorialidade, pois fulmina de invalidade potenciais contratos delegatórios que não encontrem amparo no regime maior. Isso confirma a utilidade da sistematização proposta, que espraia consequências jurídicas nucleares para correta harmonia do sistema, de molde a favorecer o impulso desenvolvimentista.
Isso não quer dizer que seria inválida a utilização de uma discricionariedade sistêmica por parte do gestor público em promover modelos atípicos que colaborem com a atividade de infraestrutura ou de serviço público, mas que não implique sua delegação, como o caso, por exemplo, da chamada “locação de ativos”. Nesse modelo não há uma delegação da atividade administrativa, mas a construção física dos ativos por meio de um sistema de investimento privado, que gera o vínculo obrigacional de locação mensal do ativo edificado por largo período de tempo. Com isso, entregue o ativo ao particular, a Administração poderá exercer a correspectiva atividade, sem qualquer problema. Casos como esse demonstram a possibilidade de criatividade do gestor, dentro das trincheiras da legalidade, sem implicar inválida delegação de atividade pública, apenas de provisão do ativo físico.
Para citarmos outro setor, vale registrar que a Lei de Portos (Lei 12.815/13), por seu turno, é enfática ao tratar do tema sob a perspectiva da infraestrutura, sendo possível verificar que seu texto contém nove menções ao termo. O artigo 3º, inciso I, dá referência do sentido empregado para infraestrutura na Lei de Portos.
Aqui, novamente, é confirmado o caminho certo do regime geral da atividade de infraestrutura em relação aos portos organizados e as instalações portuárias. Todavia, mais à frente, novamente, a utilização do arrendamento como mecanismo de delegação de bem público destinado à atividade portuária, em flagrante descompasso com esse regime, ensejando a necessidade de correção para efeito da hermeticidade do sistema. É exatamente nessas oportunidades, em que se nota um aparente conflito entre normas setoriais que disciplinam setores de infraestrutura, que entra em cena o Direito Administrativo da Infraestrutura, como a disciplina a orientar e unir os diversos direitos setoriais de infraestrutura, de forma a escapar, ainda, do que denominamos de “armadilha da setorização”.
Infelizmente, essa legislação setorial, que insiste, a todo custo, defraudar o regime público, gera um efeito terrível de insegurança jurídica de molde a desfavorecer o objetivo desenvolvimentista. A ordenação é sempre do geral para o especial: o que ocorre, infelizmente, em alguns diplomas setoriais, é a pura inversão dessa inexorável realidade. Conformam-se figuras jurídicas absolutamente desformes, que não se amoldam ao regime geral, espalhando um verdadeiro caos hermenêutico.
Não há dúvida de que uma das finalidades é, exatamente, expor e compreender essas figuras anômalas, que prejudicam o avanço da atividade de infraestrutura. Esse verdadeiro pandemônio, causado por diplomas setoriais desconformes ao regime geral da infraestrutura, é absolutamente nefasto, causa desconforto geral e coloca em xeque a estabilidade do sistema.
Sustenta-se, pois, a consolidação de um Direito Administrativo da Infraestrutura – de caráter geral – a partir de aspectos colhidos da Constituição Federal e de normas jurídicas de caráter geral que se espraiam por todo o sistema. Em análise sobre como se compõem os sistemas na atualidade, Silvia Díez Sastre aponta que a parte geral – para nós, o Direito Administrativo da Infraestrutura – é composto de regras que regem os setores da parte especial e é distinta de possíveis teorias gerais que tenham uma aspiração sistemática.
Em função disso é que se postulam, aqui, os princípios do Direito Administrativo da Infraestrutura e, em especial, neste tópico, o princípio da setorialidade. Trata-se, aqui, de um nítido mandamento nuclear, uma síntese axiológica que busca a coesão do sistema por meio do reconhecimento de que deve haver harmonia entre princípios gerais aplicáveis à infraestrutura como um todo e os princípios específicos de cada setor, surgidos da constante especialização do conhecimento humano.
Diante dessas considerações, estatui-se que o comando normativo contido no princípio da setorialidade é cogente, sendo imperiosa uma compreensão sistemática da atividade de infraestrutura, de sorte a reparar eventuais desvirtuamentos acometidos por legislações setoriais, que por vezes criam figuras anômalas que não se encaixam adequadamente a esse regime, espraiando um efeito nocivo de instabilidade dessa atuação estatal, que podem se tornar ainda mais maléficos, sob a égide da segurança jurídica, se a atividade é delegada a particulares, evitando interpretações desconformes e proclamando, com enorme vitalidade, o impulso desenvolvimentista.