As infraestruturas são, por definição e por vocação, objetos intergeracionais[1], ou seja, materializam-se e produzem efeitos necessariamente ao longo de diversas gerações, de tal sorte que podem durar mais do que a vida do homem médio. Essa circunstância não é de dimensão menor ou destituída de efeitos jurídicos. Ao contrário, a intergeracionalidade é um traço jurídico-positivo implícito no ordenamento jurídico da mais alta relevância e que interfere no exame da validade da atividade de provisão de infraestrutura. Em outras palavras, diferentemente de outras atividades administrativas, as infraestruturas impõem um juízo complexo de natureza intergeracional que condiciona a validade do exercício da respectiva competência administrativa.
Postulamos, aliás, que ela se faz sentir já no preâmbulo do texto maior, quando a Assembleia Nacional Constituinte assim declarou: “nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático”. Fundar uma ordem constitucional democrática não é algo efêmero, é um compromisso social destinado a perpassar gerações.
Não se perde de vista que, muito provavelmente, o preâmbulo não disponha de caráter deôntico.[2] Mesmo assim, a intergeracionalidade se faz sentir logo no artigo 1º, que é o produto imediato da mensagem transmitida no preâmbulo: “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Aqui, há o deôntico.
Sendo norma, o artigo 1º se lê: se há República Federativa do Brasil, ela deve ser formada pela união indissolúvel de seus entes federados e deve se pautar pelos fundamentos que são enunciados, em seguida, nos incisos I a V: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa e pluralismo político.
Para sustentar a incidência dessa norma, extrai-se, de modo implícito, a intergeracionalidade: somente mediante provimento de infraestrutura é possível que a República e a Federação existam e possam observar, cumprir e realizar seus fundamentos.
Nos artigos 3º e 4º, há mais duas normas que apontam para a intergeracionalidade da infraestrutura. No artigo 3º, ao determinar os objetivos, todos eles requerem a provisão de infraestrutura destinada a perpassar gerações, em especial, o objetivo do desenvolvimento nacional constante do inciso III. No artigo 4º, há os princípios das relações internacionais. Novamente, a intergeracionalidade se faz sentir, com muito vigor, no inciso I, que trata da independência nacional. Somente com infraestrutura perene um país pode ser independente (e, postula-se, soberano).
Também se extrai a importância da intergeracionalidade de modo direto do inciso IX do citado artigo 4º, que determina o princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Assumir compromissos internacionais dessa natureza, entendemos, requer que um país tenha suporte em sua infraestrutura, dado que o tempo das relações internacionais está radicalmente divorciado do tempo de uma vida humana: elas representam gerações e gerações que materializam a feição de seus países de origem e moldam o futuro da cooperação internacional através do tempo.
A reflexão sobre intergeracionalidade é antiga e a encontramos, por exemplo, nos escritos de Thomas Jefferson, que manifestava séria preocupação com a possibilidade de que as escolhas de uma geração pudessem vincular ou restringir as gerações posteriores.[3] A intergeracionalidade, mesmo no que concerne à atividade de infraestrutura, possui uma base filosófica mais densa. Fala-se em uma “justiça intergeracional” (intergenerational justice), cuja problematização está colocada em outros debates – exemplos notórios onde esse debate também está posto são os da previdência social e da questão ambiental.[4] No campo da atividade de infraestrutura, nosso entendimento é no sentido de que a noção de “justiça intergeracional” está voltada à realização do valor do desenvolvimento nacional.
A incorporação do princípio ao universo jurídico, porém, é mais recente[5], motivada, especialmente, por discussões ambientais e, no Brasil, está explicitamente consagrada no artigo 225 da Constituição Federal, no qual se estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Embora a questão ambiental seja, de fato, a que melhor demonstre preocupação com a justiça intergeracional, o tema não se esgota nela, mas alcança, como sustenta Paulo Modesto, diversas dimensões da vida pública.[6]
Afora a questão filosófica mais latente acerca da matéria, fato é que a atividade de infraestrutura, enquanto vocacionada para estabelecer segurança em relações de longo prazo, que beneficia indistintamente a todos, tem por marca fundante a intergeracionalidade. O desempenho de atividades de infraestrutura, insista-se, é projetado para atender a demandas socioeconômicas perenes que, portanto, não se esgotam em uma única prestação a indivíduos determinados. Prover e administrar infraestruturas é um esforço conjunto de gerações e, de modo mais evidente, de ciclos políticos.
A intergeracionalidade é bem revelada como característica da infraestrutura, sobretudo, quando se observa que o esforço de instalação de infraestruturas, geralmente, ocorre em um momento e os frutos providos por elas apenas serão aproveitados futuramente, muitas vezes, pelas gerações seguintes.
A noção de intergeracionalidade, destarte, possibilita formular uma reflexão a respeito do equilíbrio por meio do qual, por um lado, a Administração Pública deve “superar a miopia temporal (atribuição de valor demasiado ao que está perto de nós no tempo)”, ou seja, planejar com olhos voltados não apenas para momento atual, mas considerar os direitos das gerações futuras (= intergeracionalidade), e, por outro, deve evitar que recaia sobre si a “hipermetropia temporal (atribuição de um valor excessivo ao amanhã, em prejuízo das demandas e interesses correntes)”[7], ou seja, desconsiderar por completo a geração presente e pensar apenas na geração futura.
Na linha de que a atividade administrativa de infraestrutura implica ações que são dedicadas ao estabelecimento de condições que permitam um futuro (econômico e social) seguro e estável a indivíduos indistintamente considerados, a intergeracionalidade significa o elo entre os que, de modo sucessivo e ao longo do tempo, serão beneficiários da implementação, manutenção e operação de ativos públicos. A atividade de infraestrutura, voltada para o futuro, não se preocupa apenas com os destinatários imediatos de seus atos. Pelo contrário: ela é desenvolvida para estabelecer relações duráveis e de caráter geral.
Daí postularmos que a intergeracionalidade é princípio jurídico. Ela aglutina um regime jurídico que determina o planejamento estatal ótimo da infraestrutura, orienta o intérprete sobre as balizas do regime jurídico da escolha pública da infraestrutura e propugna que o aplicador do Direito encontre um equilíbrio entre o investimento para as próximas gerações sem comprometer as gerações atuais. De acordo com esse valor, busca-se tutelar as gerações futuras, portanto. O elemento deôntico está, justamente, em buscar meios concretos de se realizar a escolha pública, de molde a salvaguardar o interesse das próximas gerações, que não podem ser aniquiladas por uma decisão ilegal que não a considera. Há, nesse sentido, o dever do administrador público enumerar robustamente todos os elementos que informam a sua decisão administrativa, sob pena de invalidação.
Para ilustrar, vale a pena citar a decisão do administrador público em relação a atividade de provisão, manutenção e operação de uma infraestrutura rodoviária. A decisão pela duplicação de um trecho da rodovia, com a inclusão de uma segunda ou terceira pista, deve considerar a projeção de crescimento de demanda dos anos vindouros, de forma a garantir que as gerações futuras possam se locomover eficientemente. De nada adianta decidir pela provisão de apenas uma pista para salvaguardar um interesse público efêmero, olvidando-se em garantir a trafegabilidade das gerações futuras; é fundamental que em marcha com a realização da atividade de provisão, operação e manutenção do ativo haja a incidência do referido princípio de molde que as decisões dos administradores públicos no exercício da atividade de infraestrutura somente sejam consideradas válidas quando efetivamente produzidas à luz das gerações futuras, inclusive com o propósito de evitar o desperdício de recursos financeiros e humanos.
O princípio da intergeracionalidade opõe-se à imprevidência e à desprevenção que sempre toldou a visão de muitos que comandaram a Administração. Por essa razão, a duplicação das principais estradas de rodagem terá um custo proibitivo, pelas desapropriações necessárias: a incúria dos responsáveis não lhes permitiu ver, quando construíram a estrada original, que gerações futuras precisariam de maior espaço de circulação, prejudicando sobranceiramente a atividade de infraestrutura. Hoje, certamente, poder-se-á questionar um planejamento que não leve em conta a intergeracionalidade da provisão do ativo público sobre a qual incidirá a atividade de infraestrutura. A atividade de infraestrutura é que exige essa previsibilidade.
[1] Cf. LAAK, Dirk Van. História da infraestrutura. In: BERCOVICI, Gilberto (Coord.). Direito, infraestrutura e desenvolvimento: o debate alemão. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021 (no prelo).
[2] Vide, por todos, CARVALHO, Paulo de Barros. “O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos”. Revista Direito GV, São Paulo, vol. 6, n. 1, pp. 295-312, jan. 2010. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/24229/22994>. Acesso em: 1 jul. 2020.
[3] JEFFERSON, Thomas. The portable Thomas Jefferson. In: PETERSON, Merril D. (Coord.). The Portable Thomas Jefferson. New York: Penguin Books, 1977, p. 445, apud WOLF, Clark. “Justice and Intergenerational Debt”. Intergenerational Justice Review, vol. 2, pp. 13-17, 2008. Disponível em: https://lib.dr.iastate.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1017&context=philrs_pubs.
[4] Nesse sentido, Christopher Bertram pontua: “A justiça intergeracional é agora uma parte importante da teoria da justiça. Isto porque, agora, nós temos consciência de problemas relativos a poupanças, pensões e questões ambientais tais como aquecimento global (…)” (BERTRAM, Christopher. Exploitation and intergenerational justice. In: GOSSERIES, Axel; MEYER, Lukas H. Intergenrational justice. Oxford: Oxford University, 2002, p. 147, tradução nossa).
[5] Pode-se colher nos estudos a respeito do direito à solidariedade a origem do que chamamos de intergeracionalidade. Sobre o tema, merece destaque a obra clássica de Léon Bourgeios. Segundo o autor, a solidariedade é o elo que comunica os integrantes de uma sociedade complexa. Em suas palavras: “(…) não é um ser isolado, tendo fora dos indivíduos que a compõem uma existência real e podendo ser o sujeito de direitos particulares e superiores ao direito dos homens. Não é, então, entre o homem e o Estado ou a sociedade que se põe o problema do direito e do dever; é entre os homens eles mesmos, mas entre os homens concebidos como associados a uma obra comum e obrigados uns com os outros pelos elementos de um objetivo comum” (BOURGEOIS, Léon. Solidarité. 7. ed. Paris: Armand Colin, 1911, p. 90, tradução nossa). Destaque-se, ainda, sobre o direito à solidariedade o estudo de José Fernando de Castro Faria, o qual contém detalhada abordagem sobre a origem do direito de solidariedade, e como tal compreensão chegou ao Brasil depois do desenvolvimento inicial da matéria na França a partir do início do século XX.
[6] MODESTO, Paulo. “Uma Introdução à Teoria da Justiça Intergeracional e o Direito”. Revista Eletrônica de Direito do Estado, n. 281, 20 out. 2016. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/uma-introducao-a-teoria-da-justica-intergeracional-e-o-direito>.
[7] GIANNETTI, Eduardo. O Valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 12-13.